sábado, 25 de junho de 2011

Soluções de Água Quente

O meu avô sempre me disse, tu devias aprender era um ofício em vez de ires para doutor. A recomendação foi de tal forma persistente durante o meu período académico, que não foi difícil chegar a um ponto em que eu já conseguia antecipar o momento em que lá íamos de novo falar dos ofícios, porque na ideia dele trabalho nunca vai faltar a electricistas, canalizadores ou até mesmo àqueles fulanos que arranjam os estores.

E pese embora o meu avô nunca tenha sequer hesitado financiar os meus estudos, a verdade é que uns anos largos depois da sua morte, apareceu no meu caminho o tal mestre dos ofícios que ele tanto apregoava, a propósito dum esquentador que durante meses a fio insistiu em apagar-se a meio do banho.

Nesta altura do ano (n.d.r. verão) o transtorno nem seria assim tão grande, mas na força do inverno às 7h da manhã, ir da banheira até à cozinha com espuma nos olhos e com 7 graus positivos, para depois ficar ali uns 10 minutos a gelar e a pedir liga, vá lá ligaaaa como se o esquentador tivesse vontade própria… Bem, é coisa para deixar um tipo a pensar seriamente na vida.

Raios partam, deve ter enviado este fulano só para me atormentar a cabeça! Falo claro está do senhor dos esquentadores. E não sabendo ao certo como catalogar a profissão do senhor dos esquentadores, vamos chamá-lo de Bob dos Esquentadores.

O Bob dos Esquentadores era um fulano de boa estatura, anafado, pessoa de muito alimento, dos que não dispensam o bom do bitoque na hora do almoço regado com um belo jarro de vinho tinto. De bigode farto, barriga proeminente a pender sobre o cinto das calças, e com aquele ar manhoso de quem está a tentar fazer passar-se por uma pessoa séria.

Como qualquer Bob que se preze, este também trazia um colete cheio de pequenas ferramentas, uma caixa com ferramentas ainda maiores, e um aprendiz de feiticeiro que, estou certo, não hesitaria em atirar-se pela janela do 2º andar ao simples estalar de dedos do mestre guru dos esquentadores.

E nem foi preciso esperar muito para que as palavras do meu falecido avô começassem a ecoar de novo na minha cabeça, como uma assombração:

Bob dos esquentadores: Uiiii… Tem este modelo?

Aprendiz: Uiiii…

Eu: Ui? O que quer dizer com ui?

Bob dos esquentadores: Oh chefe é que estes modelos costumam dar uns problemazitos..

Aprendiz: Pois costumam!

Eu: Humm.. Uns poblemazitos? Que tipo de problemazitos?

Bob dos Esquentadores: Já “le” digo, deixe-me só tirar aqui a tampinha…

(pausa)

Bob dos Esquentadores: Ehpa oh chefe, isto não está com muito bom aspecto. ‘Tá a ver o que eu “le” disse? Tsss…

Aprendiz: Tsss..

Eu: Não está? Então? – respondi, um pouco a medo.

Bob dos Esquentadores: Só assim sem ver o resto “digo-le” já que deve ter o sensor avariado chefe
– retorquiu de olhos arregalados por cima do bigode oleoso, enquanto acenava com a chave de fendas ajeitando as calças que mais pareciam um dique prestes a ceder ao peso da barriga.

Eu: O sensor.. – ou seja, em bom português começava a tornar-se evidente que ia deixar ali o cu e as calças.

Em menos de 5 minutos um parafuso e duas pilhas depois, veio o diagnóstico:

Bob dos Esquentadores: Chefe, é o sensor. Isto anda na ordem dos 60€, mais as duas pilhas. Quer que eu “las” meta e arranje o esquentadorzinho?

Eu: Pronto, arranje lá o esquentadorzinho.. – um tipo vai dizer o quê?

Bob dos Esquentadores: Então olhe eu “faço-le” isto tudo … deixe cá ver … e vão 3… mais 15… Eu “dou-le” aqui um jeitinho e fica tudo p’los 70€. Se quiser factura é mais IVA.

Toma lá fresquinho. 70€ com jeitinho, sem papéis e em menos de 5 minutos, para mudar duas pilhas – que eu paguei – e desapertar um parafuso. Proporcionalmente nem o Ronaldo deve ganhar tanto em menos de 5 minutos. E quem é que ficou a rir com tudo isto? Fácil. O Bob dos Esquentadores, o aprendiz, e claro o meu avô.

Depois de pagar, e já com o Bob dos esquentadores a caminho do merecido bitoque – aproximava-se a hora do almoço -, questionei-o se teria sido um valor justo a pagar para colocar duas pilhas, e afinar um sensor. A resposta deixou-me incapaz de contra-argumentar:

Depende se quer ou não continuar a tomar banho com água fria.

Talvez percebendo que estava resignado mas não convencido, o fulano ainda fez uma pausa e acrescentou:

Oh chefe, as pilhas até você podia mudar e eu só “le” cobrei o valor de custo, e a deslocação. Afinar o sensor é que não é p’ra todos, ‘tá a perceber?

Perfeitamente. O valor das coisas tem sempre de ser colocado em perspectiva. Por exemplo, só quem já por muitas vezes se sentiu como uma ervilha pré-congelada às 7h da manhã em pleno inverno, é que pode verdadeiramente valorizar a falta que faz ter um bom esquentador em casa, ou pelo menos um que funcione.

Da mesma forma só quem já experimentou aquele clik instantâneo entre duas pessoas sabe verdadeiramente como é o calor dum beijo, que poucos segundos depois faz-nos sentir a ferver por dentro e por fora, envolvendo-nos de forma viciante como a água quente quando percorre o nosso corpo.

No fundo, as relações entre homens com cão e mulheres com gato são assim, como os esquentadores inteligentes: quando funcionam a chama é instantânea. Como disse o poeta, é fogo que arde sem se ver. Duvido no entanto que ele estivesse apensar em esquentadores quando escreveu isto.

Quando não funcionam, na melhor das hipóteses sobra-nos os duches com água tépida que nunca serão suficientes para fazer esquecer que temos de fechar a torneira.

O único senão é que nas relações, ao contrário dos esquentadores, não há quem por nós consiga fazer seja o que for, quando o sensor simplesmente não funciona. E que jeito que dava ter um Bob dos esquentadores à distância dum telefonema.

Bob dos Esquentadores: Or’então diga lá o que se passa amigo!

Amigo: Não sei explicar, acho que não há clik.. Não há chama, percebe?

Bob dos Esquentadores: Ohhh amigo claro que percebo, aliás assim sem ver “digo-le” já que deve ser do sensor!

Amigo: O sensor.. E quanto é que me vai custar o arranjo do sensor?

Bob dos Esquentadores: Eu "faço-le" aqui um jeitinho, e fica tudo p'los 70€, mais IVA se quiser factura.


Amigo: Não acha isso um bocado caro?


Bob dos esquentadores: Isso depende se você quer continuar a tomar banho com água fria, ou não.

Caramba, o meu avô é que tinha razão. Devia ter aprendido um ofício. Just in case..

1 comentário:

  1. É tão bom ver que o Peter Pan está de volta!
    Mais um "post" que me fez rir, sorrir e pensar...
    Acho que tens toda a razão: um Bob "das relações" dava muito jeito! Nós às vezes até nos esforçamos e abrimos a tampinha, mudamos as pilhas... mas a banhoca continua tépida.
    Realmente difícil, difícil é afinar o sensor!

    E Pedro Pan, não abandones a Terra do Nunca outra vez!!!

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