quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

As relações e os recibos verdes


Aí estão os recibos verdes electrónicos. A partir de agora a DGCI comunica com os contribuintes por via electrónica, abandonando o velhinho livro de recibos verdes em papel.

Por acaso o livro de recibos verdes sempre foi coisa que a mim me causou particular estranheza. Em primeiro lugar porque não é verde, o que por si só constitui um dos maiores paradoxos da história fiscal do nosso país. Depois vem sem aquela folhinha que divide os copiativos, e que dá um jeito tremendo quando queremos passar um recibo, e não 3 ou 4 duma só vez.

Em boa verdade já nada disto me faz confusão, mas a decisão da DGCI trouxe-me uma nova perspectiva do livrinho de recibos com o qual tenho convivido nos últimos anos.

Actualmente em Portugal dois em cada três casamentos terminam em divórcio, e desses dois há um casalinho que não chega sequer a descongelar o bolo de noiva no final do 1º ano. Pessoalmente acho a ideia um completo nojo, já para não falar nos problemas de partilhas que esta questão levanta. Como é que um casal divide 2 kgs de bolo de noiva congelado? Com uma motoserra? E será boa ideia introduzir uma motoserra entre um casal desavindo e prestes a separar-se? Pois, se calhar não é.

Para nós faz cada vez mais sentido o antes só que mal acompanhado, algo que entretanto evoluíu para um mais vale acompanhado quando me apetece do que completamente só. O que antes era uma ideia peregrina, transformou-se num conceito de vida que cativa cada vez mais mulheres com gato país fora.
Bom, excepto na beira interior onde este tipo de pensamento libertino ainda dá direito a apedrejamento na praça pública, mas adiante.

A verdade é que estamos cada vez mais sozinhos por opção, e acompanhados by request. Dividimos a cozinha, o sofá, o chão da sala, a cama, mas nunca o copo onde só fica uma escova de dentes, ou o roupeiro, estrategicamente atulhado de roupa e sem um único cabide disponível.
Vês? Não há espaço para ti na minha vida, mas podes vir cá abrir a porta do meu roupeiro de vez em quando.

E quanto mais abrimos a porta do mesmo roupeiro mais depressa nos apercebemos de que ali não há mesmo espaço para nós. Mas na maior parte das vezes reagimos a isso também com alívio, e não apenas com resignação ou tristeza. Não haver espaço para pendurar um pouco da nossa vida significa não ter de assumir compromissos, não ter de dizer não a tudo o resto, significa não correr riscos, não sair magoado e significa acima de tudo não ter de dizer novamente a palavra amo-te.

E neste aspecto vejo nos homens com cão uma ingenuidade romântica que não vejo na maior parte das mulheres com gato da geração Sex and the City.

Às Miranda Hobbes por muito que lhes faça falta amar de novo alguém, o receio de se exporem e sairem de novo magoadas simplesmente não compensa sair da zona de conforto, e por isso vão mantendo o closet bem arrumadinho e sem espaço algum para pendurar um único camiseiro que cheire a Tom Ford ou Jean Paul Gaultier.

Já os homens com cão raramente pensam um pouco mais à frente que a cabeceira da cama, e como tal avançam destemidos em direção ao alvo qual kamikaze a bordo dum zero japonês, a gritar banzai no meio duma chuva de tiros de artilharia.

Nós não pensamos que podemos vir a apaixonar-nos, como também não pensamos na possibilidade de não correr bem, e 2 ou 3 meses depois sermos confrontados com o sentimento de rejeição e com a solidão. Homem que é homem joga futebol de praia num campo minado no Afeganistão, como já apanhava banhos de sol debaixo duma chuva de setas no meio duma batalha medieval há 700 anos atrás. E sem protector solar.

Ou seja, somos estúpidos por natureza. Paradoxalmente é essa estupidez que nos dá a capacidade de sermos ingénuos e românticos, enquanto que as mulheres com gato munidas dum 6º sentido letal são incapazes de tamanha estupidez, e é por essa razão que a maior parte das Miranda Hobbes modernas mantém uma visão mais cínica dos relacionamentos, sem espaços por preencher no closet, e completamente concentradas nas suas carreiras, e nos filhos se os houver.

Perante o incerto o homem com cão avança com um desconcertante logo vemos, deixando o destino entregue à sorte a troco duma queca. Já as mulheres modernas pouco dadas ao esoterismo reconfortante dos Paulos Coelhos da vida, ao logo vemos respondem com um já vi. Como em já vi esse filme antes, e tu não fazes parte querido.

Claro que esta muralha intransponível é muitas vezes feita de fumo e desfaz-se com um simples sopro, no meio da solidão e do silêncio, por entre linhas escritas mil vezes de maneiras diferentes da Margarida Rebelo Pinto, entrecortadas por lágrimas e Ferreros Roché. Como a própria autora diz para quem vive a sonhar é mais fácil viver. E vai mais um chocolatinho.
Esse lado fragil não nos é permitido ver. Para nós o closet vai estar sempre cheio, e é por isso que ocasionalmente continuamos a espalhar a roupa pela casa, ao invés de tirarmos uma camisa clássica de algodão Ralph Lauren sem um único vinco, dum cabide que está do nosso lado do roupeiro.

Há 4 anos a recibos verdes na empresa onde trabalho muitas vezes pergunto-me o que mais preciso de fazer para entrar para os quadros. Depois pensando bem, porque razão a minha entidade patronal iria abdicar dum colaborador extremamente competente, absolutamente compenetrado, 100% disponível, profissional e acima de qualquer reparo? Por razão nenhuma. E é por isso que continuo a ser um colaborador a recibos verdes.

Com as mulheres com gato e os relacionamentos modernos passa-se mais ou menos a mesma coisa. Partilham o melhor nos melhores momentos, e esperam dos homens com cão o mesmo tratamento em troca. Disponibilidade total quando é exigido, competência e dedicação acima de qualquer reparo, sem complicações e sem correr riscos. Mas sobretudo sem direito a meter baixa quando as coisas não correm bem, e sem litígio legal quando há necessidade de quebrar o vínculo contratual.

No meu trabalho há um pequeno bengaleiro onde os efectivos penduram os casacos e as camisas clássicas de algodão, para terem sempre uma muda de roupa quando entram em directo no estúdio, ou em reportagem.

E ali como no closet não há espaço para mais ninguém.